“Sem corte do IPI, carros seriam ainda mais caros”, indica Antonio Filosa

    |Fonte: Correio Braziliense|

    Chefe da Stellantis — a maior montadora do país — diz que o Brasil pode combinar a tecnologia do automóvel elétrico elétrico o etanol

    O engenheiro italiano Antonio Filosa, presidente (COO) da Stellantis para a América do Sul, maior montadora do país, dona de praticamente um terço do mercado, diz que o Brasil passará pela transição do carro elétrico, mas admite que o país tem uma vantagem competitiva que é o etanol. “O Brasil não pode parar o progresso. E o progresso da indústria automobilística vai pela eletrificação”, afirma. E, para isso, a empresa pretende investir em novos modelos, entre eles, carros híbridos combinando a motorização da eletricidade com o etanol. “O argumento de que o país não precisa do carro elétrico não é puramente verdadeiro. O carro elétrico é o progresso”, frisa.

    A Stellantis completou um ano desde a fusão dos grupos ítalo-norte-americano Fiat Chrysler e do francês PSA Peugeot Citroën, com mais de 20 marcas sob o guarda-chuva. A nova holding encerrou o primeiro ano de operações com faturamento de 152 bilhões de euros (R$ 814,7 bilhões), dos quais 10,7 bilhões de euros (R$ 57,3 bilhões) foram provenientes do continente sul-americano. A região comercializou 830 mil veículos e registrou lucro operacional de R$ 5,6 bilhões.

    A empresa, hoje, é líder do mercado brasileiro de automóveis e comerciais leves. Globalmente, a Stellantis planeja investir 14 bilhões de euros por ano (R$ 75 bilhões), com ênfase em projetos de eletrificação e software. “A indústria está em uma fase de transição, esperando os novos marcos regulatórios”, destaca. E dois deles serão decisivos para a velocidade desse processo no Brasil: o Rota 2030, que definirá o novo objetivo de emissões de CO2 da indústria e o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve 8), o equivalente ao Euro VI. Para isso, será preciso muito diálogo. “O governo deve cuidar de colocar todos à mesa, entender o ponto de vista de cada um e tomar a melhor decisão para a indústria do país”, defende.

    No entender de Filosa, a redução de 35% na alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) é “louvável”, mas não evita o aumento dos preços dos carros. A inflação de matérias-primas e componentes está “quatro a cinco vezes” acima do custo de vida oficial. Ele acrescenta, ainda, que a falta de competitividade da indústria brasileira acontece da porteira para fora, e os principais problemas são: carga tributária elevada, infraestrutura precária e falta de isonomia territorial. Só resolvendo esses problemas, o país será competitivo.

    Estamos em um ano eleitoral, com muita volatilidade no mercado financeiro. Como o senhor e os executivos da companhia estão vendo o Brasil?

    Digamos que estamos em transição. Nada de novo em relação a outros anos eleitorais.

    Mas o Brasil nunca teve uma polarização como a de agora. O país está dividido…

    No final, o Brasil, sempre, assim como todo país do mundo, escolhe um de dois. É uma polarização necessária.

    É, mas no segundo turno. Antes, havia mais competição. Agora, uma terceira via está sem espaço. Abrindo as pesquisas, vemos mais de 70% dos votos consolidados em dois candidatos. Ou seja, o que vai decidir é a rejeição?

    Provavelmente. Quem tiver maior rejeição, perde.

    E para a empresa, como é atuar e fazer negócio no Brasil? Outras montadoras fecharão as fábricas no país, como a Ford?

    Sinceramente, não sei. A decisão da Ford até se arrastou por alguns anos, acredito. Não sei se haverá outras (marcas) deixando (o país). Seguramente, algumas reduzirão a própria atividade. Os segmentos mais vulneráveis são os fornecedores, porque dependem da indústria e têm menos ferramentas. A indústria está em uma fase de transição, está esperando os novos marcos regulatórios e na fase de introdução da eletrificação. Esse, por si só, é um desafio.

    O que são esses marcos regulatórios e o que vocês esperam?

    São basicamente dois. O primeiro é a próxima onda do Rota 2030, que vai definir qual é o novo objetivo de emissões de CO2 da indústria. E o segundo, o Proconve 8, que definirá as novas regulamentações adicionais sobre gases poluentes (e deve vigorar a partir de 2025). Esses dois marcos serão definidos nos próximos meses. E eles mostrarão o quão rápido será a entrada do produto elétrico na indústria automobilística brasileira. O Brasil, muito mais do que outros países, tem uma alternativa para a matriz energética de autopropulsão que é o etanol. Na equação de emissão de CO2, medida desde o plantio da cana-de-açúcar até o uso do etanol nos motores, ele é quase neutro. É quase como um carro elétrico. E, para atender aos próprios objetivos (de redução) de emissões de CO2, o Brasil tem essa grande fortaleza que ninguém tem. Então, nessa decisão, (o país) definirá a velocidade da eletrificação da indústria.

    Qual vai ser o papel do governo nessa questão?

    Esperamos que, como sempre foi feito, o governo continue com a abertura ao diálogo, porque são decisões técnicas que impactam a produção e a velocidade de industrialização do país. O governo deve cuidar de colocar todos à mesa, entender o ponto de vista de cada um e tomar a melhor decisão para a indústria do país. É reconhecido que o Brasil tem essa fortaleza do etanol, e deve continuar cultivando-a.

    Os produtores de etanol dizem que, no caso do Brasil, o carro elétrico não é necessário, devido ao enorme custo para construir uma rede de abastecimento, estimado entre R$ 300 bilhões e R$ 1,3 trilhão. E, para o etanol, a infraestrutura já existe. Há mais de 70 mil postos espalhados pelo país. Outro argumento é que a matriz energética que abastece o carro elétrico é mais suja que a do etanol. No Brasil, nem tanto, mas, na Europa, por exemplo, tem até carvão. O senhor acredita que o Brasil consegue conciliar essa questão?

    Acho que o Brasil não pode parar o progresso. E o progresso da indústria automobilística passa pela eletrificação. O Brasil tem essa fortaleza do etanol, mas um não dispensa o outro. Um é alternativa ao outro. O Brasil será, no futuro, um dos pouquíssimos países que terá uma matriz de autopropulsão, com uma série de possibilidades. Para atingir os objetivos de redução de CO2, a maioria dos países é forçada a adotar unicamente a eletrificação. O Brasil poderá adotar uma mistura, de pura eletrificação, de eletrificação híbrida, com motor elétrico e de etanol. Isso é bom, é saudável, porque deixa as portas abertas ao progresso inevitável, que é a eletrificação, mas oferece ao mercado alternativas mais competitivas. Então, o argumento de que o país não precisa do carro elétrico não é puramente verdadeiro. O carro elétrico é o progresso.

    Mas é tão caro aqui no Brasil…

    É caro, mas não apenas no Brasil. É caro no mundo. O custo das células das baterias ainda é muito alto, porque não se atingiu a vantagem da economia de escala de outras alternativas. Mas é claro que, à medida que a demanda (pelo carro elétrico) aumentar e a produção crescer, o custo das células das baterias vai cair. Será daqui a 10, 15 anos uma alternativa de competitividade razoável. Nesse período transitório de 15 anos, os governos dos demais países podem pensar em incentivo ao consumo. O Brasil pode não pensar nisso, porque tem o etanol.

    O governo, agora, deu incentivo à indústria por meio da redução do IPI, e o setor automotivo também foi beneficiado. Primeiro, um corte de 25% e, agora, de 35%. Por que essa redução não está sendo repassada para os consumidores? O preço do carro não cai, muito pelo contrário. Só sobe…

    (A redução do IPI) está sendo repassada (aos consumidores). (Sem a diminuição do IPI), os preços dos carros subiriam muito, mas muito mais. A inflação global é enorme. Nós, da indústria, negociamos aço nos últimos três anos com média de mais de 54% de aumento de ano sobre ano. O preço do aço mais do que dobrou nesse período. O carro é feito com mais de 60% de aço, e não podemos fazer nada contra isso. Então, o incentivo do IPI é laudável. O preço do plástico também está aumentando, porque é derivado do petróleo. Tem muitos itens elétricos e eletrônicos que estão ficando mais caros. A inflação de todas as commodities que a indústria usa para fazer carros está muito elevada, na ordem de quatro a cinco vezes a inflação normal. Não repassamos todos os custos para os preços dos carros face às nossas eficiências. A redução do IPI é saudável, porque dá uma ferramenta a mais para conter um pouco o repasse da inflação, que, se não fosse feito, mataria a indústria.

    E como está o fornecimento dos microprocessadores, que prejudicou a produção mundial de veículos durante a pandemia?

    Está ainda restrito. De verdade, este seria o ano para começarmos a ver algumas relevantes melhorias, mas fatos novos surgiram. Entre eles, o problema geopolítico da guerra entre Rússia e Ucrânia. E, claramente, tudo o que aconteceu na China com a nova onda da covid-19, é outro. Então, tudo isso, desacelerou a melhora que vai ocorrer no começo do ano que vem.

    Carro vai ser artigo cada vez mais de luxo no Brasil? O país teve um período, sobretudo no fim dos anos 2000, em que o brasileiro teve muito acesso, porque tinha o carro popular e o crédito em até 60 meses. Dada a queda na renda do brasileiro, só rico vai ter carro?

    Não. Primeiro, é preciso olhar o tema da mobilidade, e não dos carros. Existem novos modelos de mobilidade que estão propondo ao consumidor alternativas diferentes. Nós, como Stellantis, por exemplo, estamos propondo uma série de planos relacionados a isso. Um deles, temos uma empresa dentro do grupo chamada Flua, que prevê ao consumidor subscrições de longo termo, de 12 a 24 meses. Ou seja, no lugar de comprar o carro, você pode comprar a exclusiva mobilidade de um modelo. É quase um leasing. Sobre o fato de o carro ser um bem de luxo ou não, depende de qual é a definição de bem de luxo.

    O Brasil tem um problema crônico de inflação. Enquanto por aqui as projeções para o custo de vida de mais longo prazo continuam altas, nos Estados Unidos, espera-se queda forte a partir do ano que vem. Por que essa desconfiança em relação ao Brasil?

    Isso deveria levar a uma análise das diferenças entre os macrossistemas dos Estados Unidos e do Brasil, que são muitas. Os EUA, entre outros benefícios, contam com uma inflação sempre contida, entre zero e 2%. E o por que conseguem fazer isso? Quando olho para os Estados Unidos, vejo um país que tem uma máquina pública infinitamente menor, que tem equalização da renda com muitos problemas, mas, seguramente, mais igualitária do que o Brasil, uma carga tributária que é decisivamente menor, uma taxa de desemprego, historicamente, baixa e impulsionada por um sistema produtivo que é sempre prioridade da agenda econômica. Então, há uma série de fatores que, no fim, geram também uma inflação contida. O ponto é esse.

    E o Brasil ainda está no meio desse processo…

    Está longe.

    O país tenta uma reforma tributária há mais de 30 anos e a reforma administrativa não sai, porque as corporações aqui são muito fortes…

    Não sei se o Brasil deveria ter como objetivo ser os Estados Unidos. É claramente um bom objetivo. Mas o que o Brasil quer ser amanhã? Por exemplo, no setor da indústria automobilística. Historicamente, nos deparamos com uma situação de que 65% do nosso mercado está na área Sul e Sudeste (do país) e atuamos como se isso fosse a normalidade. Mas por que isso existe? É porque o consumidor do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste não gosta de carros? Não. Eles gostam tanto quanto (os dos Sul e do Sudeste). O problema é a renda. E deveriam fazer como os japoneses, que fazem cinco perguntas? Por que não tem renda? Por não ter trabalho lá. E, por que não tem trabalho? Porque lá não chega a indústria e as atividades produtivas. O Brasil é continental, mas tem uma economia com baixíssima descentralização. E a descentralização é fundamental por uma série de questões, entre elas, atrair investimentos produtivos fora do núcleo São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais. Quando você gera uma atração de investimento produtivo de alta qualificação do trabalho em regiões que não são o centro, você está puxando infraestrutura, está puxando serviços, está aumentando a renda lá. E, aumentando a renda, você aumenta as oportunidades de demanda, de consumo e de outras formas de desenvolvimento: social, educação. Nós temos a sorte de ter, sete anos atrás, tomado a decisão de instalar o polo automotivo Jeep em Goiana, em Pernambuco. A criminalidade da cidade caiu em 40% desde que estamos lá. É oferta de novas oportunidades.

    O Brasil já chegou a ser o quarto mercado produtor de automóveis e hoje é o oitavo. Não é uma decepção esse encolhimento?

    O sistema produtivo brasileiro tem falta de competitividade. Exporta para a América Latina, para o Mercosul, mas é mais difícil para a produção brasileira ir para outras regiões. E é preciso fazer perguntas. Por que falta competitividade? Se você dividir o sistema produtivo, portaria para dentro e portaria para fora, a análise fica mais simples. Se forem em nossa fábrica e dos nossos competidores, vocês observam que elas têm os mesmos robôs, os mesmos equipamentos e a mesma mão de obra de uma fábrica alemã, norte-americana e japonesa fazendo os mesmos produtos. O Jeep Renegade e o Jeep Compass que fazemos no Brasil são os mesmos fabricados no México, na Itália ou na Ásia. A competitividade é a mesma da portaria para dentro. Mas, da porta para fora, encontramos os problemas que falamos antes. A falta de competitividade (do Brasil) acontece porque existem essas três principais carências no sistema produtivo, que são: a tributária, a infraestrutura logística e a falta de isonomia territorial no Brasil. E como essas carências precisam ser cuidadas? A tributária, com a reforma tributária. Agora tem a PEC 110/2019, que está circulando (no Congresso) com tudo o que o país precisa que seja aprovado. A infraestrutura logística são duas. Tem a física, que são as ruas, portos, aeroportos, e a de dados, o investimento em 5G, que é muito positivo. Mas não é somente 5G, porque o Brasil tem um monte de áreas extra-urbanas que deveriam ter a expansão do 4G de alta frequência, de 770 Hertz. Por fim, a descentralização. O Brasil precisa de uma política econômica, industrial, produtiva que leve o progresso em todos os cantos do país.

    O que o Brasil representa para a Stellantis hoje? E quais são os planos de investimentos para cá?

    A Stellantis é dividida em seis regiões: Ásia Pacífico, China, que é uma região à parte, Oriente Médio-África, América do Norte e América do Sul. E, como organização, cada região tem um líder. O Brasil é o mercado mais importante da América do Sul, de longe. O país é um centro quase exclusivo da produção de uma das seis regiões da Stellantis. Portanto, o país tem uma importância estratégica altíssima.

    E é possível exportar?

    Nós exportamos, desde Pernambuco, mais ou menos 20% da produção, todas para o Mercosul. Da Fiat, exportamos 20 mil picapes Strada, por exemplo, para o México. Exportamos Fiat Argo, Pulse e Chronos para o México, além do Mercosul. Temos estratégia de fazer carros do Brasil para o Oriente Médio-África, mas as regulamentações de cada região divergiram tanto neste momento, que, tecnicamente, não dá para exportar um carro do Brasil para a Europa. Não é tecnicamente possível. Por isso, a Europa faz o Jeep Renegade e Compass em casa.

    E o que representaria o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que está sendo aguardado há mais de 20 anos? Vocês são favoráveis?

    Sim, claro. O problema da produção brasileira é a competitividade da porta da fábrica para fora. Se o Brasil quer ser um player global para exportações maiores, que não sejam limitadas apenas ao Mercosul e a outros países no entorno, tem que resolver os problemas da competitividade.

    Quais são os planos de investimentos da Stellantis para o Brasil?

    Nós vamos investir bastante dinheiro até 2025, e também de 2025 a 2030. E isso vai se traduzir no lançamento de 16 modelos.

    Além dos 16 novos modelos, o que mais vocês estão planejando?

    A introdução da eletrificação, sempre combinada com etanol. Como falamos antes, o etanol tem um papel chave na autopropulsão brasileira, mas o Brasil não pode se fechar ao progresso, e deve se abrir também aos cenários de eletrificação. E a forma mais inteligente é combinar o etanol com máquinas elétricas.

    Entre esses 16 novos modelos tem algum elétrico ou híbrido?

    Teremos a entrada de soluções de eletrificação combinada com etanol. E temos também a possibilidade de importar modelos híbridos e totalmente elétricos. Nós, claramente, queremos consolidar a nossa presença de mercado e expandir a nossa presença além de Brasil e de Argentina, que são, neste momento, os nossos mercados principais. Queremos trabalhar muito com marcas que não representam grandes volumes, como Peugeot, Citroën e mesmo a RAM. Temos uma série de planos.

    Dizem que o Brasil não é para amadores. O que é o país na visão dos investidores?

    Acho que é preciso, sempre, ter uma visão de longo prazo. Se você analisar o dia a dia, é claro que você fica perdido em conflitos que, um dia depois, serão resolvidos. Então, é melhor esquecer que estão existindo e ficar com a visão de longo prazo. E, no longo prazo, o Brasil tem tudo para despontar. Tem uma economia que pode se avantajar pela forte pulsão do agronegócio, por exemplo. Tem uma economia que pode se fundamentar sobre a riqueza de uma série de commodities que, somente ou principalmente no Brasil, são extraíveis, digamos assim, sejam minerais, sejam agrícolas. Tem uma população muito jovem na base produtiva ainda, embora a demografia esteja mudando rapidamente. Tem uma penetração muito baixa do carro em relação a outros países, inclusive, com economias piores.

    Como é essa proporção?

    De um carro para cada quatro pessoa, quando, na Europa e nos Estados Unidos, é de um para um, e, mesmo na Argentina, essa proporção é melhor. Mas o mundo depende muito do Brasil para comer e para produzir aço. Então, acredito que o ciclo econômico que possa se oferecer no Brasil é positivo. E, com tudo isso, acredito que o Brasil merece investimentos produtivos. Nós, como Stellantis, sempre fomos, acredito, a montadora que mais investiu no país, e os números aqui são positivos. Desde 2018, por exemplo, o Brasil vende mais Fiat do que a Itália.

    Voltando para o início da conversa, o senhor diz que as eleições não atrapalham, mesmo tendo um país mais polarizado.

    Sabemos que uma vez a cada quatro anos tem eleição, com mais volatilidade do que nos demais. Não estou falando que não atrapalha ou que não é volátil. Mas, neste ano, temos mais volatilidade, mas mais dirigida pelo contexto externo do que pela alta polarização interna. A polarização interna era mais previsível. Não é algo que saiu da curva. O que não era previsível é tudo o que está acontecendo fora: a guerra entre Ucrânia e Rússia, a nova onda de covid-19 chinesa, a falta de semicondutores. Tudo isso gera um nível de volatilidade dirigido pelo contexto global até mais impactante para a indústria.

    No governo Collor, quando houve a abertura da economia, o presidente dizia que os carros brasileiros eram carroças. Os carros brasileiros ainda são carroças comparados ao mundo?

    Não temos carroças. Temos as mesmas plataformas. Por exemplo, os modelos Jeep são iguais em todos os cantos. Mas se compararmos um modelo Fiat daqui com um modelo Fiat italiano, a casca é bem diferente, eu concordo. Até o tamanho e tudo. Mas as plataformas são as mesmas, ou muito parecidas. Os componentes elétricos e eletrônicos, também. A motorização é ainda a mesma. Há alguns anos, os componentes tecnológicos dos carros são muito comuns entre os países. Já os opcionais dependem muito do mercado. Por exemplo, a eficiência do ar condicionado no Brasil é muito mais alta do que no resto do mundo, porque o consumidor brasileiro é muito atento a esse aspecto do conforto dentro do habitáculo. O mercado aqui exige suspensões mais sofisticadas.

    Qual é o carro mais vendido no Brasil da marca?

    De todos, a picape Fiat Strada. É o modelo mais vendido em toda a América do Sul. Até a Europa quer.

    E é possível vender para os europeus?

    Não. Devido às regulamentações. Seria possível, investindo algumas centenas de milhares de euros, o que tornaria inviável o business case.

    Por quê? Qual é o problema da regulamentação?

    Tem uma série de requisitos homologatórios que devem ser atendidos. A Europa, por exemplo, precisa de eletrificação, então, seria preciso investir em uma versão eletrificada. E tudo isso custa algumas centenas de milhões de euros. Então, eles querem, mas, quando fazem o business case, é inviável.

    O acordo UE-Mercosul ajudaria isso?

    Esse acordo é uma premissa para que, depois, se decida investir essas centenas de milhões de euros e se amplie o mercado, por consequência. Qualquer abertura é boa. A história demonstra que a abertura gera a ampliação de mercado e melhora as condições de desenvolvimento. Agora, o Brasil tem que resolver o problema da competitividade. Porque, uma vez que se abre e não é competitivo, o país fica inundado de produtos importados, como ocorre no Chile, que não tem indústria. Tem apenas mineração de cobre e pesca, porque a decisão foi de se abrir totalmente, sem gerar competitividade interna.

    O Brasil ainda tem a tradição da indústria muito forte e diversificada, apesar do processo de encolhimento visto nos últimos anos. E o custo aqui dos carros ainda é muito elevado do que lá fora…

    É preciso tirar a carga tributária. Se o Brasil aplica 40% de carga tributária e a Europa e os Estados Unidos aplicam 15%, você tem 25 pontos percentuais sobre os quais não se pode fazer nada. Mas, tirando a carga tributária, o custo que sai das fábricas não é incomparável. Os dois gaps principais são carga tributária e infraestrutura.